quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Meus pêsames

Tinha um cadáver ali, esticado no chão daquele quarto limpo, apesar de bagunçado. E não era um cadáver qualquer. Esse era "especial", porque, apesar de absolutamente imóvel e sem qualquer indicação de presença de sinais vitais, vivia.
Um semi-cadáver. Foi deixado ali porque havia o nojo e a aversão característicos de tudo que morre. O que fazer? Enquanto não chegasse alguém - testemunha - com coragem suficiente para tomar as medidas necessárias, nada.
E o semi-cadáver lá, pacientemente morto, inerte e provavelmente rindo-se por pregar uma peça nos espectadores de seu corpo cheio de pernas e todo nojento - como a criança que finge dormir quando algum adulto se aproxima. Por falar nisso, tenho para mim que, quando criança, quem me enganava eram os adultos (eles nunca percebem que a gente percebe que eles sabem que estamos fingindo, porque adultos não sabem representar).
Mas não no caso do semi-defunto. A cena parecia mesmo de teatro. Todos abandonaram o cadáver lá. Inclusive o próprio cadáver abdicou de sua vida por alguns instantes em favor da farsa. Nós fazemos isso às vezes, abrindo mão de nós por nossos amigos, parentes, ou pelas grávidas nas filas do mercado ou do banco. Não acho errado. Na verdade não acho nada sobre isso.
E lá estava aquele corpo todo esquisito - porque se mortos já são estranhos, semi-mortos
então... Mas aí cansou-se de ser morto (ou teve medo de se acostumar com a representação e depois não saber viver novamente) e - susto! - levantou. Não, não levantou. Rastejou. Só movimentou-se. E de forma tão abrupta, como que tomado por um susto provocado por um pensamento que o assustou profundamente (como acontece quando estamos quase dormindo) - e moveu-se. E assustou a todos, ainda mais que a si mesmo.
Mas é compreensível. Imagine o espanto de ver um cadáver no seu quarto limpo apesar de bagunçado. Agora imagine que este cadáver se mexe. Pois então... Apesar de tudo, uma cena bela. Alguém que escolhe morrer para representar e, com medo de então morrer para sempre, volta a viver como num susto. Quando será que morrerá verdadeiramente?
Isso parece "Beleza Americana". Pessoas que viveram mortas e que, não contentes em ter passado pela vida ao invés de fazê-la acontecer, resolvem "mudar de vida" nos instantes finais. Mas aí é tarde para se mudar o fim. Havia cerca de quarenta anos para serem pelenamente vividos, e que foram mortos dia após dia, a cada sufocamento de vontade, a cada vez que se evitou ser feliz ou abrir um sorriso. Então resolve-se: "Agora vou viver". Mas aí não há mais tempo... Aí, se há vida após a morte, quem sabe na próxima se aprenda. Mas o tempo desta vida acabou. Foi tudo ao contrário: morreu-se em vida, e quis viver a morte... Meus pêsames: seu tempo acabou.
O tempo só é eterno para as baratas. Elas dominam a arte de viver: espalham seus órgãos para fora do corpo quando são massacradas por chinelos desesperados de nojo, vivem sei lá quantos dias sem cabeça e só morrem por não conseguir comer. Elas vão repovoar a Terra após a explosão das bombas atômicas. Por isso tenho motivos para crer que aquela barata que se foz de morta naquele quarto limpo apesar de bagunçado veio só nos dar um recado: não importa o quanto vivo ou morto você esteja, seu mundo será meu.

2 comentários:

Darlan disse...

O texto é excelente!!
li ontem, mas não comentei por pura preguiça. haha

Escriba Eventual disse...

Esse texto me fez lembrar de "Metamorfose" de Franz Kafka