quinta-feira, 26 de junho de 2008

Sala do Espelho I

Ele olhou para si, e viu-se ali, no escuro, prestes a entrar. Aquela roupa, inadequada até minutos atrás, fria, incômoda, agora não era mais do que a sua pele original, impossível dissociar-se uma da outra. Os olhares atentos, ele percebia, captando cada movimento, cada gesto calculado e ensaiado até a exaustão. Naquele dia, acordara muito cedo, contrariando seus costumes boêmios de fazer da cama companhia até o sol, já bem alto no céu, esquentar bastante o quarto e expulsá-lo de lá. Mas levantara-se. Sabia de sua importância no que ocorreria naquela sala nas próximas horas. O frio cortava seu rosto quando virou-se para enfrentar o despertar frio daquela manhã de fim de outono. Cores, muitas, vozes, muitas, nervosismo calado e subentendido por cada partícula daquela ante-sala. Fumaça de cigarro em pontos localizados sinalizavam a ansiedade transbordante que buscava escape. Toca o sino. Ouvem-se vozes na grande sala. Ele pensa nela, e gostaria de sua presença. Sabe que não vem, e não a culpa. Apenas sente muito, porque não há tempo para pensar em nada mais que isso. Sente muito. Sente os dentes mordendo os lábios e sangrando-lhes. Controla-se, afinal, não é o fim do mundo e apesar da grandiosidade daquele ato, é algo até bastante simples. Sonhara com aquele dia, que chegou antes demais. Mas no tempo certo para mostrar que era possível. E mais uma vez a desejou ali, desejou que pudesse vê-lo, apreciá-lo, desejou que pudesse saber que funcionava, que dava certo, que era sério mesmo. Desejou que ela soubesse que ele não estava brincando. Mas ela não soube. Ele entrou, luzes por todos os lados, música, só para que ele entrasse. Caminhou firme e lentamente por sobre aquelas tábuas, abaixo daquelas luzes, voltadas todas para ele, para aquele momento, e sentiu-se importante. E após os aplausos, uma lágrima correu na maquiagem branca, os olhos brilhantes e cheios de orgulho de si mesmo. Ele conseguiu, ele provou do gosto de ser aplaudido pelo trabalho bem realizado. E gostou. E voltou-se para o lado de lá de seu trabalho. Sim, trabalho. Sem dinheiro, mas que lhe proporcionava grandes riquezas impalpáveis, insensíveis. E por isso ela achava que ele não conseguiria, que ele brincava, que ele desistiria, que era hobbie. Mas não. Era sério. É sério. Mas ela não quer saber. Ela não o vê, ela não o ouve, ela não o percebe. Porque conta o troco do pão.

terça-feira, 10 de junho de 2008

"Hello stranger"

"você me faz parecer menos só, menos sozinho;
você me faz parecer menos pó, menos pozinho"

E de repente, como se a sua solidão não fosse mais uma questão de querer sair dela, mas sim de haver a necessidade de não estar mais só; então tentava buscar nos olhares confusos das ruas, nas pessoas passando apressadas e aleatoriamente, a razão de sua existência. Sim, tratava-se de uma pessoa profunda, exagerada, de últimas conseqüências. E buscava razão na fumaça de um cigarro, no fundo de um copo ou na dureza de uma sarjeta. O sol lhe afagava o rosto, dando-lhe o carinho que ninguém se importava em oferecer-lhe. Mas o sol estava distante. Não mais que aquelas pessoas que ignoravam sua existência. E isso machucava. Doía como uma alma sangrando. E era inevitável e irremediável. Me dê um remédio para a alma. Foi o que pensou em dizer ao balconista da farmácia mais próxima. Mas sabia que não adiantaria. Parou no próximo bar e então fez o pedido. A bebida não o embriagava. Aliviava as dores e o fazia esquecer de si por alguns instantes. Era tudo que tinha: bebia. E quem o olhava não queria saber dele. Questionava sua moral, sua índole, e tudo que há de se questionar quando se trata de um bêbado-infeliz-que-podia-ter-tudo-na-vida-e-não-tem-nada. Bêbado infeliz é redundante. Enfim. Questionava-se tudo ali, mas não se chegava à questão-raiz. Ele bebia porque doía. Ele bebia porque queria um pouco de paz. Ele bebia porque amava sem saber quem. Bebia porque não tinha alvo. Bebia porque era o que lhe restava. Até o último gole.